Pular para o conteúdo principal

Outra face da censura


Há 15 dias um escritor e historiador teve um capítulo do livro censurado pelo editor, no fechamento da edição para impressão, o empresário alegou que investe em ações de grandes corporações citadas na ficção do autor. Como produzo literatura e análise crítica estou com a “pulga atrás da orelha” sobre o meu direito de escrever com liberdade - e todos os cidadãos brasileiros têm uma ameaça concreta pesando sobre a liberdade de expressão. Nem todos, porém, sabem o que está ocorrendo. Sempre existiu tendência repressiva contra as obras de arte que espalham a realidade social. Assim, os problemas sociais são atacados na sua expressão artística e não mais nas suas causas efetivas.
Levanto algumas pontas dos véus negros que costumam cobrir esses atrapalhos do poder. Porque, a aplicar-se o mesmo critério, deveria mandar-se apreender toda a grande literatura mundial, em que os autores descreveram situações que envolviam figuras infantis, desde um William Shakespeare, passando por Lewis Carroll até Wladimir Nabokov. Isto não é nada, comparando-se a todos aliciadores que manipulam meninas de 12 anos nas esquinas do Brasil. São as cenas reais e terríveis que muitos pais fazem vista grossa pela fome de pão e aconchego, retrato da indústria da carência. Nem tanto erudito, mas sensato, acrescento que nem a Bíblia, na chamada Vulgata Latina, escaparia de condenação, já que nem a língua casta de Jerônimo disfarça o tratamento obsceno com que foram violentados os anjos em Sodoma ou o lenocínio de Mardoqueu, no livro de Ester.
E vejo na proibição uma ação profundamente farisaica. Para o psicanalista Hélio Pelegrino, “a tarefa do escritor é trabalhar a língua em nome da comunidade” e esse ofício deve ser estimulado e garantido pelo Estado, através de uma absoluta liberdade de expressão. De outro lado, não foram poucos os que viram nas cenas de nu jogos sensuais e narcisismo exacerbado ou a forma gratuita, além de normal, de temas como a gravidez precoce, entre outros.
Imoral, acima de tudo, é a intolerância. Trata-se de um tiro no pé, pois a sanção volta-se contra a intolerância e consagra a liberdade de expressão. Não temos lembrança de quem proibiu James Joyce, Gustave Flaubert. D. H. Lawrence, Marcel Proust, entre outros casos famosos. Mas os censurados tornaram-se inesquecíveis.
A reação do leitor, do internauta e do telespectador brasileiro tem sido a solidariedade. País de fortes tradições católicas, parece haver um consenso que leva a dar atenção ao que sofre, confortá-lo com a nossa piedade. Claro que são de diversa natureza os motivos que levam o público a procurar o que foi proibido, desde os tempos imemoriais do paraíso terrestre, onde o fruto proibido era o mais apetecido (e continua sendo), mas no geral constata-se uma atenção toda especial para com o censurado. Ao contrário do que poderia esperar a censura, o livro ou as cenas de cinema, novela ou teatro adquirem um charme adicional com a proibição. O estigma funciona ao contrário. Como se vê, os critérios são vagos e são os costumes que realmente cumprem a função de interpretar as leis. Uma curiosidade cruel: essas diversas censuras sempre perseguiram os contemporâneos, excluindo por norma, os clássicos. É claro que a história não demora muito a transformar contemporâneos em clássicos mas, enquanto isso não ocorre, nenhum espírito por mais conservador que seja vem a indignar-se quando lê a palavra whore ou bitch (“puta”) em Shakespeare.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O PAU

pau-brasil em foto de Felipe Coelho Minha gente, não é de hoje que o dinheiro chama-se Pau, no Brasil. Você pergunta um preço e logo dizem dez paus. Cento e vinte mil paus. Dois milhões de paus! Estaríamos assim, senhor ministro, facilitando a dificuldade de que a nova moeda vai trazer. Nosso dinheiro sempre se traduziu em paus e, então, não custa nada oficializar o Pau. Nos cheques também: cento e oitenta e cinco mil e duzentos paus. Evidente que as mulheres vão logo reclamar desta solução machista (na opinião delas). Calma, meninas, falta o centavo. Poderíamos chamar o centavo de Seio. Você poderia fazer uma compra e fazer o cheque: duzentos e quarenta paus e sessenta e nove seios. Esta imagem povoa a imaginação erótica-maliciosa, não acha? Sessenta e nove seios bem redondinhos, você, meu chapa, não vê a hora de encher a mão! Isto tudo facilitaria muito a vida dos futuros ministros da economia quando daqui a alguns anos, inevitavelmente, terão que cortar dois zeros (podemos d

Trechos de Lavoura Arcaica

Raduan Nassar no relançamento do livro em 2005 Imagem: revista Usina             “Na modorra das tardes vadias da fazenda, era num sítio, lá no bosque, que eu escapava aos olhos apreensivos da família. Amainava a febre dos meus pés na terra úmida, cobria meu corpo de folhas e, deitado à sombra, eu dormia na postura quieta de uma planta enferma, vergada ao peso de um botão vermelho. Não eram duendes aqueles troncos todos ao meu redor velando em silêncio e cheios de paciência o meu sono adolescente? Que urnas tão antigas eram essas liberando as vozes protetoras que me chamavam da varanda?” (...)             “De que adiantavam aqueles gritos se mensageiros mais velozes, mais ativos, montavam melhor o vento, corrompendo os fios da atmosfera? Meu sono, quando maduro, seria colhido com a volúpia religiosa com que se colhe um pomo. E me lembrei que a gente sempre ouvia nos sermões do pai que os olhos são a candeia do corpo. E, se eles er

O Visionário Murilo Mendes

Retrato de Murilo Mendes (1951) de Flávio de Carvalho Hoje completaram-se 38 anos de seu falecimento Murilo Mendes, uma das mais interessantes e controvertidas figuras do mundo literário brasileiro, um poeta difícil e, por isso mesmo, pouco divulgado. Tinha uma personalidade desconcertante, sua vida também constitui uma obra de arte, cheia de passagens curiosas de acontecimentos inusitados, que amava Wolfgang Amadeus Mozart e ouvia suas músicas de joelhos, na mais completa ascese mística, não permitindo que os mais íntimos se acercassem dele nessas ocasiões. Certa vez, telegrafou para Adolph Hitler protestando em nome de Mozart contra o bombardeio em Salzburgo. Sua fixação contemplativa por janelas foi assunto do cronista Rubem Braga. Em 1910, presenciou a passagem do cometa Halley. Sete anos depois, fugiu do internato para assistir ao brilho de outro cometa: Nijinski, o bailarino. Em ambos os casos sentiu-se tocado pela poesia. “Na